passeio dentro de ti

nesta cidade, muito guarda-segredos e cantinhos rarefeitos. inacessíveis. na pele colada de balões e bailarinas..
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há palavras que requerem uma pausa e silêncio
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[herberto helder]
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último comboio
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temerário entrou no comboio
decidido a esquecer
decidido a recuperar o que havia perdido:
humanidade, compaixão, interesse.
não era militar
horas antes da guerra, era um homem no coração dela.
as horas, os carris,
traziam pobres que se sentavam
pelos lugares vazios.
os pobres vinham sujos,
os pobres não queriam compreender
o que não compreendiam,
os pobres, quase sempre desconfiados,
eram maus, verdadeiramente.
os pobres não tinham culpa.
pouco a pouco, apareceram arvores
açudes, pequenos rebanhos.
um pedinte sorria,
tinha o que beber, tinha o que comer,
não tinha culpa.
prostitutas, havia,
por uma nota, uma nota pequena
ajoelhavam-se entre as suas pernas,
não tinham culpa.
as nogueiras carregadas de frutos
lembraram-lhe o seu país cheio de droga,
as crianças nos bolsos dos velhos,
criminosos nos bolsos de tudo,
não têm culpa.
de repente, saído do nada
uma igreja, ortodoxa, e o reflexo
dos seios da prostituta,
que os acariciava dizendo
«come, baby, come».
a igreja e os seios
desapareceram na curva seguinte.
sem saber o que fazer
com o livro que trazia na mão
(poetas que gritavam amor,
gritavam a falta de um corpo,
como se lhes não importasse
terem perdido a alma)
pôs-se a inventar mentiras,
não para humilhar a verdade,
apenas tentar descobrir um lugar
onde já não fosse possível
mentir mais.
não se sabia bem em que país se estava,
todos eles poderiam ser
um outro qualquer que não o próprio.
alguns adolescentes, já tão pobres
quanto os adultos,
ao verem o livro nas mãos gritaram
«o cabrão é poeta, se calhar
ainda nos paga para nos fazer um broche».
talvez não soubessem
mais o que dizer, em inglês,
talvez não quisessem dizer isso,
talvez nem sequer tivessem uma língua,
não tinham culpa.
setembro, à saída da estação.
um deserto com montanhas ao fundo
e uma forte dor na nuca.
táxis e o vento,
ruidoso como a incerteza,
jurou nunca mais voltar atrás,
jurou que seria verdade, desta vez.
dizia adeus à europa.
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[paulo josé miranda, o tabaco de deus]
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