passeio dentro de ti

nesta cidade, muito guarda-segredos e cantinhos rarefeitos. inacessíveis. na pele colada de balões e bailarinas..
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as demolições alastram a todos os homens.
mesmo os edifícios que ainda têm pulso
caminham inteiramente inclinados.
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na loucura pediste o impossível.
corpos cheios de bocas
entregam-se às diversas formas de banho.
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expiarei as minhas traficâncias.
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comoves-te sempre com a imposição de promessas
sobretudo quando intangíveis e
dilatadas no tempo por
grandes períodos de carência.
agora restam os labirintos.
jardins onde se refugiam nas sombras
dos sistemas de vigilância invisíveis
pó de açafrão
cloro bromo éter
purpurados timbales
turíbulos
incontroláveis delírios de roldanas.
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[francisco vinhas, por que se desloca o homem para o afrontamento do abraço (adapt.)]
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- estou a ler agora.
- sinto-te mais perto aí longe.
- a 'distância' tem um pouco esta característica. aproxima-nos.
- é.
- herberto helder, tenho de voltar a ler.
- compulsivo.
- curioso o que disseste. a distância aproxima
- é meio estranho e cliché.não digo de maneira negativa.
- não tens que justificar. leio-te.
- tanta coisa na cabeça.
 - maneira de sentir o frio aconchegada. é assim, cru.
- tenho acordado com muitas dores de cabeça
- inevitabilidade estranha para a qual não conseguimos sequer um balanço lógico de sins ou nãos. pura e simplesmente levantas-te e tomas banho. pegas nos pedaços da cama e colas, tal qual bailarina transparente e soldadinho de chumbo.
- a própria paisagem e chuva ajuda. bom e asfixiante [gostava de conseguir dormir melhor, sem estas dores de cabeça] continua estranho nunca nos termos visto.
- só podia ser assim.
- parece sempre tão normal e lógico.
- se nos víssemos podia ser diferente. não sei. existes.
- ser assim, quem sabe seja melhor.
- connosco não há muito isso do bom e do mau. há inevitabilidades
 - quase inocente.
- gosto de ti [vai lá apanhar os pedaços].
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há palavras que requerem uma pausa e silêncio
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[herberto helder]
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último comboio
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temerário entrou no comboio
decidido a esquecer
decidido a recuperar o que havia perdido:
humanidade, compaixão, interesse.
não era militar
horas antes da guerra, era um homem no coração dela.
as horas, os carris,
traziam pobres que se sentavam
pelos lugares vazios.
os pobres vinham sujos,
os pobres não queriam compreender
o que não compreendiam,
os pobres, quase sempre desconfiados,
eram maus, verdadeiramente.
os pobres não tinham culpa.
pouco a pouco, apareceram arvores
açudes, pequenos rebanhos.
um pedinte sorria,
tinha o que beber, tinha o que comer,
não tinha culpa.
prostitutas, havia,
por uma nota, uma nota pequena
ajoelhavam-se entre as suas pernas,
não tinham culpa.
as nogueiras carregadas de frutos
lembraram-lhe o seu país cheio de droga,
as crianças nos bolsos dos velhos,
criminosos nos bolsos de tudo,
não têm culpa.
de repente, saído do nada
uma igreja, ortodoxa, e o reflexo
dos seios da prostituta,
que os acariciava dizendo
«come, baby, come».
a igreja e os seios
desapareceram na curva seguinte.
sem saber o que fazer
com o livro que trazia na mão
(poetas que gritavam amor,
gritavam a falta de um corpo,
como se lhes não importasse
terem perdido a alma)
pôs-se a inventar mentiras,
não para humilhar a verdade,
apenas tentar descobrir um lugar
onde já não fosse possível
mentir mais.
não se sabia bem em que país se estava,
todos eles poderiam ser
um outro qualquer que não o próprio.
alguns adolescentes, já tão pobres
quanto os adultos,
ao verem o livro nas mãos gritaram
«o cabrão é poeta, se calhar
ainda nos paga para nos fazer um broche».
talvez não soubessem
mais o que dizer, em inglês,
talvez não quisessem dizer isso,
talvez nem sequer tivessem uma língua,
não tinham culpa.
setembro, à saída da estação.
um deserto com montanhas ao fundo
e uma forte dor na nuca.
táxis e o vento,
ruidoso como a incerteza,
jurou nunca mais voltar atrás,
jurou que seria verdade, desta vez.
dizia adeus à europa.
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[paulo josé miranda, o tabaco de deus]
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porque não sei que coisas tinhas lido há uns tempos,
ao sair do cinema quiseste conhecer o amor grande e secreto.
a bordo de uma mulher tentei hoje um pouco de carinho.
nem sequer me disseste o teu nome
fazes parte do ser da rua,
de outro homem,
do esforço de andar.
a procura é luta nos saldos?
[não vás acreditar que me sodomizaste 
em cima da mesa com a saia levantada 
e que depois fiquei tranquila ao teu lado 
fumando este cigarro e 
olhando-te na cara ao vestir-me com prestreza 
deixando-te adormecido, como queria esse poema 
que leste na praça antes de me pedir que viesse aqui contigo; 
não, amor, não creias nisso. 
eu estava apenas a tentar sobrepor-me a ser quem sou]
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devia acompanhar-te amanhã ao dentista,
 ter outro filho teu.
amar a crédito sem verificar a dívida.
tentei fugir e o certo é que deu resultado:
risco ocasional,
não te seguir atravessando a sala,
 beijar-te em qualquer lado,
sentar-me nas cadeiras sem roupa amontoada por passar e
um pouco de tempo até que cheguem os monstros,
os teus fantasmas.
faltam-nos braços e palavras,
 horizontais noites
saliva de ter sido
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[jordi virallonga, quanto sei de mim (adapt.)] 
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todas as viagens são negócios e os hotéis reservam-nos o direito de não encontrarmos diferenças. as janelas laranjas brilhantes penduradas nas altas árvores de betão. com um só cigarro, restava-lhe pôr-se a andar ao contrário dos carros. toda a terra é estrangeira. uma gota de álcool, as pequenas coisas com que se desperdiçam os dias e se inventa a eternidade ou uma noite de sexo à tarde. com os olhos e as ruas enlameadas pela corrupção dos corpos, uma garrafa de vodka vazia, palavras sem decência nenhuma, a beleza branca que quase sempre mata, os sapatos na sala à luz da manhã. os corpos abrigando-se da claridade excessiva despediram-se para nunca mais. decidido a pagar para ouvir alguém fingir prazer.
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nas férias brinca-se ao que se poderia ter sido. é provável que alguém pense na sua própria mulher de férias em outra parte do mundo e na possibilidade de estar a sentir o mesmo. quando regressarem amar-se-ão como se houvesse alguma verdade nisso. nesse dia ouvir-se-á em uníssono «já tinha saudades de casa». lisboa morre a pouco e pouco sob os lençóis.
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[paulo josé miranda, o tabaco de deus] (adapt.)]
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ela escreve a palavra fim a marcar
novas coordenadas no corpo.
tatua os medos numa fragilidade compulsiva.
bailarina transparente e soldadinho de chumbo,
 presos por uma cola de contacto fora de prazo.
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sorriem da gravidade como desdobra os joelhos,..
da verticalidade ridícula das cidades,
dos lábios exageradamente pintados,
da vida mal copiada de um ficheiro zip.
num único movimento imperfeito explicam a intimidade crua.
como é a tua intensidade? 
[palavras embrulhadas numa folha de papel manteiga]
não há reflexos, 
és bonito assim.
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pássaros pedem uma porta da gaiola
que sirva de referência ao carteiro.
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 [marco dias & nuno gandra, lado negro (adapt)]
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