passeio dentro de ti

nesta cidade, muito guarda-segredos e cantinhos rarefeitos. inacessíveis. na pele colada de balões e bailarinas..
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no princípio tacteávamo-nos,
não sabíamos bem o que dizer,
o que podíamos dizer, o que arriscar,
mas rapidamente deixámos que as palavras
nos levassem para onde quisessem.
as palavras sabem sempre mais do que nós.
são sempre mais do que palavras: um punhal,
uma carícia, uma confissão.
a minha interlocutora gostava muito de palavras,
de jogar com as palavras, e eu também.

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chegava a ser perturbante ouvir a sua voz no escuro do meu quarto, deitado sobre a cama ou a andar de um lado para o outro como um bicho cercado. eu queria cada vez mais aquelas palavras que sentia cada vez mais minhas e desejava que ela sentisse o mesmo. a imaginação pode ser uma arma poderosa. claro que tudo isto, desde o início, teve a ver com sexo. sexo é o lugar caótico onde nos queremos lançar para nos libertarmos do terrível jugo do tempo, onde o momento promete falsamente a eternidade. [..] ficava com a estranha sensação de saber mais sobre ela do que sobre qualquer outra pessoa. pelo menos de saber quem ela era como mais ninguém adivinhava. disse-lhe que já não aguentava muito mais e ela disse-me que já não aguentava muito mais.não nos dissemos o que era isso que já não aguentávamos. a última vez que tive prazer com a minha amante já não foi com ela que tive prazer mas sim com a voz que só a mim pertencia. fiquei inquieto. disse-lhe que era imperioso acabarmos com aquilo. respondeu-me que nos encontraríamos no dia seguinte às sete da tarde. o que poderá acontecer a duas almas ávidas que desejam o que não é possível alcançar? -onde estás? ouvi. e eu disse: estou aqui. e ela disse: eu também estou aqui. virei-me e abracei o corpo que ali estava. ficámos assim agarrados mais do que seria de esperar, as nossas caras escondidas pelos corpos. depois vi-a e tive a surpreendente sensação de saber desde sempre como era a sua cara. ela, unicamente ela, só ela. disse-me baixinho: vamos amar? e eu disse: és linda, faz de mim o que quiseres. apanhámos um táxi. do quarto de hotel com vista para o mar só ficou uma série de fotografias que lhe tirei ao amanhecer, as suas mãos entreabertas e uma cicatriz a meio do corpo. ninguém, senão nós, saberá disto.
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[o mundo é tudo o que acontece_pedro paixão]

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